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Terminamos o mês de abril com mais um artigo sobre as perturbações do espetro do autismo e se no último falamos sobre o autismo de baixo funcionamento, hoje falamos sobre autismo de alto funcionamento. Autismo de Alto Funcionamento é como quem diz, autismo de nível 1 ou o que anteriormente era designado por Síndrome de Asperger. Para percebermos o porquê das alterações dos conceitos farei uma contextualização histórica.

Recuemos para 1943, neste ano, o psiquiatra austríaco Leo Kanner definiu pela primeira vez a ideia de “autistic disturbances of affective contact1Lima, 2012, p.1. Kanner, publicou um artigo em que descrevia “11 crianças fascinantes”. Inicialmente, estas crianças tinham sido diagnosticadas com “esquizofrenia infantil” no entanto, Kanner apercebeu-se de que estas tinham caraterísticas comuns que as tornavam diferentes das crianças com esquizofrenia infantil2Filipe, 2015.. “As caraterísticas identificadas foram: incapacidade de relacionamento com os outros, falha no uso de linguagem, desejo obsessivo de manter as coisas da mesma maneira, ansiedade (tinham medos desapropriados de coisas comuns), excitação fácil com determinados objetos ou tópicos”3Lima, 2012, p.1.

No mesmo ano, na Áustria (Viena), Hans Asperger escreveu a sua tese de doutoramento sobre “Psicopatia autística na infância”. A descrição destas crianças era bastante semelhante à de Kanner: dificuldade na interação social e insistência em padrões repetitivos. As únicas diferenças encontradas entre as crianças do psiquiatra austríaco e as de Asperger foram a capacidade cognitiva e a comunicação verbal, sendo que nestas se demonstravam ligeiramente mais desenvolvidas4Filipe, 2015.

Em 1970, Lorna Wing e Judith Gould, investigaram a validade clínica do estudo de Kanner. Avaliaram todas as crianças com menos de 15 anos, do distrito de Camberwell, que foram sinalizados com qualquer tipo de perturbação física ou mental, dificuldade de aprendizagem ou alteração do comportamento graves ou ligeiras. Muitas das crianças foram identificadas, tal como Kanner descreveu, mas outras não corresponderam exatamente às caraterísticas apontadas. Mais tarde, quando o trabalho de Asperger foi conhecido, comprovou-se que as restantes crianças eram semelhantes à sua descrição5Lima, 2012, p.1.

Wing acrescentou ainda que acreditava que se tivessem avaliado todas as crianças, incluindo as que não estavam diagnosticadas com nenhuma dificuldade, iriam encontrar mais com as características de Asperger. É então que em 1979, estas autoras criam a expressão do espetro do autismo6Filipe, 2015..

Contudo, apenas na versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) em vigor (DSM-V) é que esta perturbação é classificada com a designação, Transtorno do Espetro Autista. Esta perturbação conta com três níveis de severidade, sendo que o: nível 1, exige apoio; nível 2, exige apoio substancial e; nível 3, exige apoio muito substancial7APA, 2014, p. 52.

Fazendo uma ligação histórica, segundo Filipe8Filipe, 2015., podemos concluir que as perturbações descritas por Kanner correspondem a um extremo maior de gravidade do espetro e as de Asperger ao menor.

Como temos visto até aqui as caraterísticas variam de sujeito para sujeito, no entanto, dentro do autismo de nível 1 destacam-se dificuldades em interações sociais, comunicação verbal e não verbal, comportamentos repetitivos ou estereotipados, dificuldades em compreender frases de duplo sentido (devido à sua interpretação literal) bem como em compreender as emoções (muitas vezes, com comorbilidade com Alexitimia9No campo da medicina, a alexitimia refere-se a uma perturbação psicológica que se caracteriza pela incapacidade de sentir, gerir e expressar as próprias emoções, como resultado de não as … Ler mais) e expressões faciais e em iniciar, manter e/ou terminar uma conversa. Estes sujeitos podem parecer desinteressados em assuntos comuns, no entanto, têm hiperfocos dos quais conseguem falar quase como num monólogo. Estas caraterísticas dificultam a criação de amizades, mas é frequente quando lhes perguntamos se têm amigos termos uma resposta positiva, isto porque nem sempre o conceito de amigo é claro para eles – por exemplo, se alguém me diz “olá” na escola posso considerar um amigo.

O diagnóstico de uma perturbação do espetro do autismo, nível 1, nem sempre é fácil. Muitas vezes, estas pessoas são apenas descritas como “mais reservadas” o que as leva a passar pelos pingos da chuva, verificam-se muitos diagnósticos tardios (em fase de adolescência e até idade adulta) e que a procura de ajuda acontece por outras causas, por exemplo, ansiedade ou depressão.

A intervenção no autismo de nível 1 passa essencialmente pelo treino de competências sociais individuais e/ou em grupo – a seguir focarei mais na parte do acompanhamento.

As competências sociais podem ser observáveis, cognitivas e emocionais. Os comportamentos observáveis prendem-se com dar e receber elogios, expressar afetos, desculpar-se, defender direitos, expressar opiniões e lidar com críticas (gerir a frustração). Um comportamento observável é ensinar a sorrir para quando se tira uma fotografia: ensinar a olhar para uma câmara, que movimentos a fazer com os lábios, etc.

As competências cognitivas e emocionais dizem respeito ao processamento e aplicação da informação, resolução de conflitos sociais, identificação de emoções (perceber quando alguém fica irritado com uma atitude e qual é a expressão facial que assume), posturas sociais, colocar-se no lugar do outro, gerir emoções e reconhecer estados emocionais.

Alguns aspetos a trabalhar no treino de competências sociais: contato ocular, diminuir dificuldades de comunicação, desenvolver capacidades de comunicação, aprender a ouvir o outro, seguir instruções, praticar a assertividade, resolver conflitos/problemas sociais e aprender a lidar com situações novas.

Neste acompanhamento podemos utilizar:

  • Histórias sociais: é uma aplicação de modelação que envolve histórias muito breves, frequentemente ilustradas, que moldam a criança para o desempenho, passo a passo, de várias competências sociais, autossegurança básica e comportamentos de higiene.
  • Treino Comportamental: combinação entre o ensaio dos comportamentos sociais a ter e as consequências desejadas. Podem ser treinadas várias situações e as consequências que se deseja que acontece. Após adquirido os novos comportamentos podem ser colocadas complicações-surpresa, para que o sujeito consiga ultrapassar uma maior variedade de situações.
  • Treino de Transferência: à medida que o sujeito consegue alcançar os comportamentos sociais esperados é importante aplicá-lo num contexto mais natural, isto é, fora do ambiente terapêutico e no local do mundo “real” (ex. ida à discoteca).
  • Prática Orientada: esta intervenção está associada a intervenções mais a nível motor, isto é, não bastam as instruções verbais, também é necessário um apoio em como se deve posicionar o corpo. Ex. a mãe coloca-se atrás da filha para orientá-la a bater numa bola de basebol.
  • Treino de Relaxamento: existem estratégias de relaxamento (ex. relaxamento muscular progressivo ou RMP), esta técnica é utilizada para as pessoas se acalmarem em situações de tensão, ansiedade ou irritação.
  • Jogos didáticos: os jogos didáticos promovem a resolução de problemas em situações sociais. Um exemplo destes jogos é o Evolui +: Caminho dos segredos. Este jogo de tabuleiro contém várias casas, um dado e vários bonecos (que identificam cada um dos jogadores), em cada casa os jogadores têm de equacionar uma resolução para um conflito social. O objetivo principal deste jogo é fazer as crianças e adolescentes refletirem como agir em situações problemáticas que podem ocorrer no seu dia-a-dia.

O acompanhamento mencionado visa tornar as pessoas mais funcionais e mais integradas na sociedade, mas não é esperada uma mudança na “personalidade”, é muito provável continuarem a existir interesses com grande intensidade ou surgirem comentários um pouco desadequados.

Apesar de toda a intervenção que se possa fazer, é importante não querermos mudar a pessoa na sua totalidade e também que a comunidade se esforça para se adaptar e facilitar a integração destas pessoas. O dia 2 de abril foi o Dia Mundial das Consciencialização do Autismo, e as campanhas sobre o autismo se estendem a todo mês de abril. Mais o trabalho de acompanhamento, consciencialização e integração não se restringe a abril. Estamos numa jornada longa para conseguir alcançar uma sociedade que integra e esta preparada para receber estas diferenças, afinal, as coisas que realmente importam são concretizadas passo a passo.

Daniela Vieira

Psicóloga Clínica & Educacional. Autora do artigo “Autismo“, “Autocontrole Emocional“ e “Autismo de Baixo Funcionamento

Imagem Por, Piet Mondrian, “New York City” (National museum of modern art)

Notas de rodapé

Notas de rodapé
1, 3, 5 Lima, 2012, p.1
2, 4, 6, 8 Filipe, 2015.
7 APA, 2014, p. 52
9 No campo da medicina, a alexitimia refere-se a uma perturbação psicológica que se caracteriza pela incapacidade de sentir, gerir e expressar as próprias emoções, como resultado de não as entender (Infopédia).

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