Caro futuro eu,
A escrita foi sempre um exercício introspetivo, espero que ainda o mantenhas, mas é a primeira vez que a experimento nestes moldes. Envio-te esta carta sentado à secretária, a partir de um final de tarde invernal de domingo, que até para a estação nem é bem normal, uma vez que o denso nevoeiro ainda não se levantou. O ano de 2019 aproxima-se do fim e com ele também uma nova década, espero que esta carta te encontre bem, daqui a outros dez anos.
Na última década, as mudanças sucederam-se constantemente e contrastando as realidades, no início tudo era tomado por garantido, com a ignorância de quem não assumia preocupação alguma, para depois, a pouco e pouco, a incerteza mostrar a sua faceta de amargor.
A cada nova circunstância, fui aprendendo novas lições: eu sabia que nada nem ninguém duraria para sempre, porém nunca tinha consciencializado a perda de forma tão crua; senti o frágil equilíbrio pelo qual os sonhos se projetam suspensos; a confiança afiou-se como lâmina de dois gumes, enquanto um pode rasgar caminhos de oportunidades, outro pode abrir feridas que nunca mais saram; o falhanço não foi completamente negativo, pode-se aprender algo com ele e também percebi como não se recebe na proporção em que se oferece.
A cada ensinamento, vi que a nossa individualidade não está gravada em pedra, acredita que terás de a redesenhar várias vezes, pois uma pessoa é também as circunstâncias que a rodeiam, mas, acima de tudo, nunca alteres aquilo de que somos feitos.
E tu, como estará o nosso mundo volvidos dez anos? Quais as músicas que ouves, os livros que lês, os lugares que visitas e as palavras que escreves? Hoje a lista de desejos ainda é grande, nas viagens, nas aprendizagens, no trabalho, nas experiências… São imensas as possibilidades maravilhosas com que podes alimentar a chama, o calor daquela coisa incognoscível que nos aquece o espírito. Tenho curiosidade, se já andaste de balão, se fotografaste um raio, se deixaste o teu emprego parvo, se já aprendeste a meditar, se sabes tocar algum instrumento, se adotaste algum animal ou talvez tenhas feito algum voluntariado… E se conseguiste o que eu quero agora, será que ainda o queres?
Quanto às pessoas, soubeste rodear-te de quem traz mais genuinidade à expectativa do teu olhar? Gostava que estivesse tudo bem com o pai, a mãe e a avó, visto que, neste universo, a família é o último reduto da nossa segurança. Os amigos, se os escolheres bem, podem tornar tudo tão mais leve!
Tu sabes que, neste momento estou numa encruzilhada e, por enquanto, se acredito no destino é pela via da suspeição, por isso tento escrever, palavra a palavra, uma alternativa àquilo que ele reserva. Pergunto como, ou apenas se, deste um rumo a esta minha indecisão? Se a inconformação humana impediu a fluência enquanto arrastamento, se essa recusa veio à tona e foi a vela, que te permitiu navegar na insanidade do quotidiano?
Para ser sincero, se não o for contigo, com quem serei, não é? Não me tenho dado muito bem com a transitoriedade do tempo, nem o tenho utilizado da forma mais satisfatória para mim próprio, aliás, esse foi um dos maiores problemas nos últimos anos… Os dias transformaram-se em semanas, semanas em meses, parece que nos distraímos durante um segundo e o jogo inverteu-se, todas essas pequenas unidades de tempo sedimentaram-se na passagem de anos.
Bem… A carta terá de chegar ao fim e uma vez que só posso ocupar o dia de hoje, a previsão do futuro não está nas minhas capacidades, mas espero chegar mais perto de ti com esta mensagem, com esta confiança naquilo em que fores, o meu futuro eu. Quero apenas a tua felicidade, porque coisas acontecem, a vida vai acontecendo e nós acabamos por acontecer com ela.
Um abraço,
O eu do teu passado
Imagm Por, William Michael Harnett, “Secretary’s Table” (Santa Barbara Museum of Art)
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