Meio da tarde. Um dia quente. A temperatura devia rondar os trinta e tal graus. Sentada debaixo do marmeleiro quase centenário, na inequívoca certeza de uma sombra, desfrutei da calmaria que me rodeava.
A árvore parecia raquítica, de tão velhinha. Quase não tinha folhas e, por isso, quase não havia sombra. Mas eu, por um descargo de consciência, arrastei para lá a cadeira, sentei-me e deixei-me ficar.
Distinguiam-se já alguns frutos. Bolas redondas de pêlo macio fazendo lembrar as bolas de ténis, embora mais desmaiadas na cor e menos ásperas na textura. Então eu, que adoro o sol, deixei-me ficar, semi-coberta pela parca sombra.
O comum nunca me atraiu. Sempre preferi o imperfeito, o incongruente. O 50% em vez de 100%. Porque é naquilo que não é perfeito que reside a realidade. Eu sempre fui atraída pelo sonho, mas o que sempre me definiu, de verdade, foi a realidade.
Os troncos retorcidos do marmeleiro, o sabor autêntico da sua fruta, a veracidade de todo um sistema, com prós e contras, benesses e falhas, criado pela natureza. E era isso que eu precisava (e preciso) de viver. Era aquela a paz interior que eu precisava de alcançar. Saber que nada está bem, mas aceitar tudo como o melhor que podemos ter.
Na copa reduzida do marmeleiro, eu encontrei a minha paz. Metade luz. Metade sombra. Podia ser essa a definição de quem sou.
E os frutos trazem lembranças. E a natureza continua a trazer lembranças. E aquela paz, por baixo da copa do marmeleiro, trouxe-me verdades. Tudo o que é imperfeito atrai, por ser tão belo. Por ser tão diferente…
E se fosse sempre assim? Os carros lá ao longe, na estrada. Eu, recuada do resto do mundo, mas não o suficiente para deixar de me intrincar nele.
E se fosse sempre assim? O calor morno misturado com a suavidade da brisa. Eu, perdida em mil quimeras sem certezas de qualquer resolução.
E se fosse sempre assim? A paz… A paz por baixo da copa do marmeleiro, oferecendo a plenitude.
Nádia Carnide Pimenta
Escritora e Autora dos textos “A Casa Vazia“, “Cartas“, “Vitória“, “Não Te Percas de Quem És”, “Cálice da Loucura“ e “Ciclo Vicioso“.
Imagem Por, Paul Signac, “Place des Lices, St. Tropez” (Carnegie Museum of Art)
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