Desde que me lembro de ser gente, que as ouvia à minha volta. Vozes. Algumas mais dominantes, mais frequentes, mais ásperas. Outras que só se faziam ouvir de lés a lés, ao ponto de eu me esquecer que existiam, sequer. Desde que me lembro de ser gente, que o mundo sempre foi um borrão, um jogo de sombras, numa escala de cinzentos que povoavam a minha imaginação. Habituei-me a viver de olhos fechados, insensível às nuances de cor que, volta e meia, assombravam os meus pensamentos.
A memória do mundo cinzento e as vozes eram a minha imaginação. Mas eram também o meu mundo e a única realidade que eu conhecia. Eu sabia-as distinguir, dentro da minha cabeça. Respondia-lhes, mantinha conversas com elas. Sentia amor vindo delas ou, em alguns casos, desprezo e até mesmo tristeza. Parece que nem na minha mente eu conseguia ter um mundo colorido.
De vez em quando, as vozes que povoavam a minha imaginação davam-me tréguas amargas e eu sentia-me a pessoa mais sozinha do mundo. Era muito jovem, não sabia classificar o sentimento; mas hoje olho para trás e reconheço a solidão a roçar o desespero do que era estar numa divisão sozinho, sem ver, sem ouvir. Total e completamente sozinho.
As vozes preenchiam tanto da minha vivência que eu chegava a senti-las, como manifestações físicas. Eram tão naturais para mim como respirar. Eram tudo o que eu conhecia. Eram parte intrínseca de mim. E por isso eu sentia-me tão abandonado, no silêncio. Sem as vozes, quem era eu?
Uma das vozes que eu ouvia de forma errática começou a tornar-se uma presença constante à minha volta. Uma voz grave, autoritária. Falava por cima das outras vozes, silenciava-as. Pela primeira vez, as vozes juntaram-se num frenesim de gritos e confusão. Costumavam ser tão calmas, mesmo na sua falta de amor para comigo; sussurradas, na maior parte das vezes. A comoção repentina fez com que, depois de anos com os olhos fechados, os abrisse, assustado. As vozes tinham corpo e gritavam à minha volta. Sentia, mais do que percebia, os seus movimentos. A voz autoritária voltou a impor-se, silenciando todo o resto. O movimento parou. Nada se mexia, quando a ouvi outra vez.
“Segue-me”.
Senti um toque no fundo das costas, um empurrão gentil. Não me mexi, o corpo invadido por suores frios. A voz rugiu de volta.
“Hoje!”
Voltei a fechar os olhos e deixei-me guiar, se pelas vozes, se pela intuição, se pela mão de alguém, não sei.
“Abre os olhos”, ouvi a voz a dizer. Estava aterrorizado. Conseguia ouvir as outras vozes, baixinho, murmúrios indecifráveis. “Abre os olhos!”, repetiu, e eu voltei a fazê-lo pela segunda vez naquele dia. Distinguia um círculo de sombras difusas contra um dia opressivamente quente. Eu estava no meio delas. Eu e… mais alguém. As vozes silenciaram-se por completo, até que só uma se fez ouvir. Não uma qualquer. A mesma, grave, áspera, exigente.
“Mata”.
Não me mexi. O silêncio continuou, quente e pegajoso, a cobrir-me com uma película fina de suor. Não ouvi, não senti, não vi, até que era tarde demais. Levei uma pancada tão forte na cabeça, que me fez cambalear para trás. O outro alguém tinha-me atacado. Levei a mão à cabeça, onde senti algo viscoso. No meio do cinzento, vi a minha mão a brilhar com outra cor. E vi, pela primeira vez, as minhas mãos. Grandes. Eu tinha crescido.
Não esperei por mais nenhum ataque.
Muito pouco do que se passou a seguir ficou na minha memória. Memória seletiva, dizem os entendidos.
Tenho os olhos vendados a maior parte do tempo. As vozes, essas, foram-se, para nunca mais serem ouvidas.
À luz difusa das memórias fragmentadas, este passado recente assume a forma imaginária de um aroma que me inebriava os sentidos, clínico e hospitalar. Pessoal médico à minha volta, relatos confusos de um culto que vivia fora do radar, praticantes de ações nefastas com as crianças que o líder forçou as mulheres a ter. Apregoavam procurar a vida eterna, quais alquimistas modernos. Peça a peça, tudo se encaixava com as minhas vivências. No meu subconsciente, fazia sentido. Os horrores descritos cantavam dentro de mim, ecoando nas memórias de uma infância sem cor. No dia-a-dia, era-me igual. Não pensava nisso, não era uma vítima. Era apenas mais um. Sozinho, agora que as vozes desapareceram. Sozinho, como me habituei a viver cada dia.
Mas nem sempre me deixavam sozinho. Sensações, sentimentos, memórias e experiências explorados numa sala que cheirava a lavanda, capaz de me provocar dores de cabeça, por mais suave que fosse a voz da pessoa que estava do outro lado. Para mim, as pessoas não eram pessoas; não eram mais do que o som das suas vozes. Nunca era alguém de carne e osso, mas sim algo incorpóreo que pairava algures à minha volta.
Senti uma irritação enorme nos olhos e tirei a venda, aflito para coçar. Movimento à minha volta. E uma só voz, a rugir-me aos ouvidos.
“Mata”
Escritora e Autora dos textos “Último Passeio”, “Funeral de um Coração“ e “Pesadelo“
Imagem Por, Francisco Goya, “Witches Sabbath” (Museo Lázaro Galdiano)
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