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Ela não sabia há quanto tempo é que a história de amor tinha começado, mas as visitas eram esporádicas quando ela se apercebeu da ânsia que sentia de cada vez que se deitava na cama.

Enquanto vestia a longa camisa branca que tinha passado as últimas semanas a bordar, o seu pensamento voava para aquele primeiro encontro, tão inesperado quanto entusiasmante. Pela calada da noite, ele tinha chegado, qual demónio que a arrancou de sonhos vazios e a hipnotizou com um simples olhar. Parecia ainda conseguir ouvir o bater do seu coração no silêncio absoluto da noite, a maneira rítmica como se ajustava ao bater do próprio coração dele, até que ambos batiam como um só.

Noites curtas e sonos fugazes começaram a dar lugar a permanências maiores no meio dos lençóis e consultas desesperadas nos apotecários da cidade, em busca de fórmulas mágicas que lhe pudessem proporcionar mais uns minutos sagrados de contacto.

Sorriu, ao massajar os braços com o creme caro que tinha comprado nesse dia. O aroma deixou-a inebriada e o sorriso transformou-se numa gargalhada pequena, ameninada, quase infantil – quase como sabendo que fazia algo proibido.

Toques por vezes efémeros, odores que se esfumavam quando os seus olhos abriam, imersos numa tristeza imensa e numa busca frenética de reencontrar o sono espantado. A maior parte das suas noites haviam-se tornado assim. As poções que engolia antes de adormecer deixavam o seu corpo cansado, mas a mente cada vez mais protestava, pedindo mais e mais para se sentir satisfeita. Os momentos a dois tremiam na sua memória, por vezes incapaz de distinguir sonho de realidade, ficando apenas o amargo na sua boca quando chegavam ao fim.

Olhou-se ao espelho. As curvas do seu corpo eram acentuadas pelo tecido finíssimo da camisa, os seus bordados tão pequenos e detalhados que só seriam discerníveis de perto. O pendente amarelo do seu colar caía-lhe sobre o peito quase descoberto. Sentando-se na cama, pegou nos últimos frascos de remédios que ainda lhe sobravam, hesitante sobre qual tomar. Queria uma noite especial. Uma noite que durasse. Indecisa, bebeu da primeira garrafa até ao fim. Recostou-se, o olhar nervoso sobre as outras que lá ficaram pousadas. De uma só vez, bebeu o resto de cada uma, até não sobrar uma única gota. Deitou-se e, pacientemente, esperou pelo seu amado.

Naquela noite, ele veio particularmente rápido. Com promessas de amor eterno, sugeriu fugirem juntos para sítios desconhecidos por todos. Perante o medo dela, assobiou um som baixo e rouco, e um cavalo espreitou por entre as cortinas da cama, como se sempre tivesse estado do outro lado. Apreciou as suas curvas, gabou-lhe as ondas douradas do seu cabelo, brincou com o pendente amarelo que repousava no seu peito. Ela, em êxtase, hipnotizada por aqueles olhos, deixou-se ir. O mundo à sua volta deixou de existir, tornando-se uma mistura de densas sombras e escuridão.

A porta do quarto abriu-se de repente, com um barulho ensurdecedor. Pés correram na sua direção, apenas para a encontrar prostrada, o peito imóvel, o coração em silêncio. O pai uivou de dor, a mãe afastou-se em agonia. No meio das suas lágrimas, pareceu ao pai ver nas sombras um par de olhos que o fixava, numa expressão horrorífica de prazer e pavor. A imagem desses olhos acompanhou-o até ao leito da morte, assim como o mistério das pegadas em terra que pareciam feitas por um cavalo, encontradas ao lado do corpo inerte da sua filha.

Nádia Batista

Escritora e Autora das obras, “Noite das Bruxas”, “Micaela”, “O Sonho de Ofelia” e “Sociedade do Horror Português”. E textos como “Último Passeio” e “Funeral de um Coração

Imagem Por, Henry Fuseli, “The Nightmare” (Detroit Institute of Arts)

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