A evidência científica dos últimos anos mostrou uma grande diversidade de opiniões e de definições sobre a Dislexia, sendo que a dislexia surge habitualmente descrita como uma dificuldade no processo de aprendizagem da leitura e escrita, onde ocorrem trocas, omissões, adições, aglutinações e divisões indevidas de grafemas e palavras, e também ocorre uma dificuldade em ler/escrever palavras que partilham formas gráficas (mato/nato) ou fonéticas idênticas (pobre/popre)1Massi, G., & Santana, A. P. (2011). A desconstrução do conceito de dislexia: conflito entre verdades. Paidéia, volume 21..
Houve em tempos quem definisse a dislexia como a “cegueira verbal” , “dislexia congénita” e até “alexia do desenvolvimento”, entre outras.
Antigamente acreditava-se que as dificuldades leitoras eram desenvolvidas devido a problemas emocionais, de imaturidade e afetivos2Teles, P. (2004). Dislexia: Como identificar? Como intervir? Revista Portuguesa de Clínica Geral – Dossier Perturbações do Desenvolvimento.. No entanto, graças às últimas investigações na área, comprovou-se que a dislexia surge em pessoas com uma inteligência normal ou até acima da média, sem que haja a presença de problemas neurológicos ou físicos evidentes, que não tenham problemas do foro emocional ou social, que não provêm de meio socioeconómicos e culturais desfavorecidos e que não tenham tido acesso a um ensino inapropriado.
Segundo o Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM-5) em 2014, as perturbações específicas de aprendizagem deixam de ser subdivididas em transtorno de leitura (dislexia), transtornos de cálculo (discalculia), transtornos de expressão escrita (disgrafia), entre outros transtornos, como eram classificados no DSM-IV (2000), uma vez que a prática demonstrou que os indivíduos que apresentam essas dificuldades podem ter défices em mais do que uma área de aprendizagem.
Se pensarmos bem, é nos primeiros anos de aprendizagem formal (escola) que surgem as dificuldades que exijam as áreas de leitura e escrita, sendo possível identificar as perturbações de aprendizagem, como a dislexia, uma vez que alterações no processo de ensino-aprendizagem se tornam mais evidentes, tanto para os professores, para a criança como para a família.
Embora haja mais conhecimento sobre as perturbações de aprendizagem específicas, nomeadamente a dislexia, ainda existem vários mitos e rótulos associados às crianças com esta perturbação. Não é a primeira vez que ouvimos comentários do género: “ele é preguiçoso”, “só lê / faz o que lhe interessa”, “para algumas coisas presta atenção”. Pois bem, a verdade é que estes rótulos atribuídos podem ter efeitos nefastos sobre as crianças/famílias, porque uma coisa é a criança que não quer aprender a ler, outra é a criança que não pode aprender a ler/acompanhar os colegas através dos métodos pedagógicos tradicionais. É um erro gravíssimo assumir que a perturbação da leitura e escrita não existe, porque a mesma é uma perturbação neurológica com a qual não escolhemos nascer e é extremamente complexa!
A Dislexia é, de fato, uma perturbação neurológica, ocorrendo alterações a nível neurológico. Tais alterações influenciam os processos de leitura, sendo que os mecanismos de leitura dos disléxicos diferem dos não disléxicos. Verifica-se então que leitores eficientes ativam redes neurológicas das regiões parietal-temporal e occipital-temporal, conseguindo ativar percursos de análise rápidos, conseguindo ler as palavras instantaneamente – em menos de 150 milésimos de segundo. Em contrapartida, os disléxicos recorrem a um percurso lento e analítico para realizar a descodificação das palavras, ativando redes do girus inferior frontal, vocalizando as palavras, e da zona parietal-temporal, segmentando as palavras em sílabas e estas em fonemas, para procederem à conversão grafema-fonema (letra-som) e aceder ao seu significado.
Efetivamente, as crianças com dislexia apresentam uma alteração no sistema neurológico que dificulta o processamento fonológico, bem como a capacidade em aceder ao sistema de análise das palavras e de leitura automática.
Embora o diagnóstico ocorra em idade escolar (após dois anos de aprendizagem formal), existem vários sinais de alerta que ocorrem antes. Quanto mais precoce existir intervenção, mais facilmente a criança irá adquirir as competências necessárias.
É importante que pais, professores e educadores estejam atentos a indicadores de diagnóstico precoce da dislexia.
De forma resumida, os sinais de alerta mais significativos, são os seguintes:
- História familiar de dificuldades na leitura e escrita;
- Atraso na aquisição da linguagem;
- Cometem incorreções típicas da dislexia na fala, depois dos 5 anos, quando já deveriam ter o padrão idêntico ao do adulto, como omissão e inversão de sons nas palavras produzidas oralmente: fósforos/fosfos, pipocas/popicas, por exemplo;
- Manutenção de um padrão imaturo de fala, frequentemente descrito como “linguagem/fala de bebé”;
- Dificuldade em aprender coisas novas, como nomes de cores (verde/vermelho), pessoas, objetos, lugares, etc.;
- Dificuldade em memorizar canções e lengalengas;
- Dificuldade na aquisição de conceitos de tempo e espaço básicos ontem/amanhã; direita/esquerda; depois/antes;
- Dificuldade em compreender que as frases são formadas por elementos menores (palavras) e que estas se podem segmentar em unidades mais pequenas (sílabas);
- Dificuldade em conhecer as letras do seu nome próprio;
- Dificuldade em aprender e recordar os nomes e sons das letras;
- Dificuldade em associar as letras aos sons (correspondência grafofonémica);
- Comportamentos de recusa/adiamento de tarefas de leitura e escrita, manifestando relutância e lentidão na sua realização;
- Necessidade de acompanhamento individual do professor/pais para continuar/terminar as tarefas e trabalhos;
- Queixas de pais e professores em relação às dificuldades de leitura e escrita;
- Tendência para tentar adivinhar as palavras, apoiando- se em pistas visuais (ilustração, por exemplo);
- Dificuldade em terminar os testes no tempo previsto;
A evidência científica, bem como a minha prática clínica, mostra que as crianças com dislexia estabelecem uma associação entre o seu desempenho na leitura e a sua inteligência. Deste modo, as crianças com dislexia acreditam que quando são bons a ler e a escrever, então também são inteligentes. Não é difícil de perceber o quão desconfortável este pensamento/crença é para estas crianças.
Assim sendo, é claro que a dislexia pode influenciar o autoconceito, nomeadamente o autoconceito académico, surgirem dificuldades emocionais bem como comportamentais3Carvalhais, L. & Silva, C. (2007). Consequências sociais e emocionais da Dislexia de desenvolvimento. Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE), … Ler mais. Além disso, também podem passar por sintomatologia ansiosa e depressiva sempre que tem de ser avaliadas ou em atividades em que os mecanismos de leitura e escrita sejam requeridos.
É por estas razões que a identificação de sinais de alerta e consequentemente a realização de intervenção precoce é fundamental para diminuir os prejuízos a nível académico, social e pessoal que a dislexia pode trazer.
Imagem, Cy Twombly, “Untitled Blackboard”
Notas de rodapé[+]
↑1 | Massi, G., & Santana, A. P. (2011). A desconstrução do conceito de dislexia: conflito entre verdades. Paidéia, volume 21. |
---|---|
↑2 | Teles, P. (2004). Dislexia: Como identificar? Como intervir? Revista Portuguesa de Clínica Geral – Dossier Perturbações do Desenvolvimento. |
↑3 | Carvalhais, L. & Silva, C. (2007). Consequências sociais e emocionais da Dislexia de desenvolvimento. Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE), 11 (1), 21-29. |
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