O cinema sempre foi o toque no coração. A magia do som, dinâmico, estridente. Os efeitos sobre a tela. A cadeira, vibrante, com asas. Um sonho em que se envolvia e deixava envolver.
O cinema sempre foi o alívio dos ombros. O alívio do peso com que a vida o sobrecarregava dia após dia. A lufada de ar fresco. O oxigénio por entre o fumo tóxico de cada acordar.
Cada filme o preenchia em cada recanto. E a cada filme terminado a urgência pelo seguinte. A necessidade do alívio, dos efeitos, do sonho e do ganhar asas.
A cada final, um novo tornava-se premente. Como se o oxigénio se gastasse a cada fim. Como se a respiração disso dependesse. Como se a vida disso dependesse. Ansiava constantemente por um recomeço. Um recomeçar para a vida.
Com “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” tudo mudou. O filme elevara-lhe os pés. Levara-o a vaguear pelos confins do seu mundo. Confins nos quais se perdia. Por anos perdidos por entre atalhos, florestas, grutas escuras e húmidas. Agora, sempre uma encantadora cascata. Prados verdes, repletos de girassóis e borboletas pousadas em rosas perfumadas.
É ainda preso ao filme e à sua mística que vislumbra um vulto. Um vulto e luzes brancas, pequenas. Luzes mínimas e brilhantes chamam a sua atenção. Se olhar para a direita, por cima do ombro, vê-as. Vibrantes, unidas por um fio, na montra da loja da avenida. Mostram-se-lhe como se soubessem. A vivacidade com que se mostram é como se soubessem. E a projeção do corpo no espelho de água que se desenha no passeio.
Reparou no pormenor. Ultimamente tem reparado mais nos pormenores. Sobressaem. Brilham e acenam. Relembram-no de que já nada é como era.
― Talvez nunca tenha sido.
O sino toca numa alegre sinfonia. Desconhece a sua origem. O toque do sino alegra-lhe a alma. O sino toca como se soubesse. As brancas nuvens fofas aproximam-se do seu corpo e enredam-no. Elevam-no.
Desde que abriu a porta para o filme, tudo mudou. Abriu a porta e uma luz amarela, quente, entrou-lhe por si adentro direta ao coração. Aninhou-se de mansinho no coração, num encanto viciante.
Abrir uma porta será sempre abrir uma caixa velha, enferrujada. E não saber o que contém. Esperar o inesperado.
Ainda assim, ganhar coragem para a abrir e enfrentar o que trará. Enfrentar o que com ela virá. Sentir-se embalado por uma corrente e deixar-se levar. Sorrir. Sentir a vida como é. Na sua plenitude, no seu desembaraço. Na sua essência.
Como a tecla do piano que toca a melodia. A necessidade do lenço para enxugar os olhos marejados de lágrimas. Porque agora se permite sentir como nunca. Porque agora olha as nuvens que passam como algodão e deixa-se elevar por elas nos seus sonhos doces. Porque agora sente as gotas da chuva na pele e o cheiro a terra que o envolve num abraço revitalizante. Porque agora a vida lhe sorri com um calor adocicado. Abriu a porta e deixou que a vida lhe sorrisse.
Como sabe bem que a vida sorria. Nessa liberdade até então desconhecida. Nesse amor caloroso que me aquece.
O raio de sol penetrava-lhe o coração. A melodia persistia no seu pensamento. Os tons de variadas cores preenchiam-lhe o olhar. As portas poderiam significar salvação. As portas poderiam significar a descoberta de algo único e inigualável. As portas como caixas velhas, enferrujadas. Fechadas por anos para que um dia alguém as abrisse. Como a aventura da vida. E o sorriso guardado no canto do rosto para um dia ser descoberto.
Jurista, Escritora e Autora da obra “A Noite Onde Me Deixaste” e outros textos como “Um Sonho Perdido”, “Meio Ambiente“ e “Sonhos“
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Sem dúvida que o cinema é um mundo completamente à parte. Um mundo que, por vezes, não conseguimos largar de tão viciante que se torna e, quando encontramos um favorito, gostamos de o rever vezes sem conta. Mais um bonito texto em Amaral Media
A ligação entre as diferentes formas de arte é algo realmente interessante. Tudo faz parte do universo artístico, mas cada forma de arte tem a sua galáxia. E ter textos que nos conseguem fazer viajar de uma galáxia para a outra é tudo que podíamos pedir 🙂