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Narciso era filho do rio Cefiso e da ninfa Liríope e nasceu dotado de uma beleza incomparável, o que preocupou desde cedo os pais, pois tamanha perfeição poderia facilmente afrontar os deuses. A mãe de Narciso procurou um sábio capaz de ver o futuro, que lhe disse que o filho teria uma vida longa, desde que não visse o seu próprio reflexo, pois isso seria o seu fim.

Ao longo da sua vida, Narciso captou as atenções das pessoas por todo o lugar onde passava, desencadeando em si aquilo que na cultura clássica se designa de ‘hybris’, ou seja, arrogância, vaidade. Todas as mulheres o queriam, todas o desejavam e todas acabavam recusadas por ele.

Eco, uma ninfa, foi uma dessas mulheres que idolatrou Narciso, mas que, tal como todas as outras, foi ignorada. Para se vingar, recorreu a Nêmesis, deusa da vingança, que tratou de prender Narciso num amor impossível para sempre: o amor pelo seu próprio reflexo.

Narciso foi deliberadamente encaminhado a um lago, no qual viu pela primeira vez o seu reflexo, ficando tão enamorado com a sua imagem a ponto de não conseguir abandonar o local e acabar por morrer de fome.


Grande parte das pessoas estão a par do mito de Narciso e da associação deste mito àquilo a que hoje chamamos Narcisismo. O termo nasceu no século XIX com Freud e é atualmente reconhecido como uma Perturbação de Personalidade. O termo foi se banalizando, passando a ser usado na linguagem corrente, para descrever pessoas com características semelhantes às de alguém com Perturbação de Personalidade Narcísica, mas que não o são. Freud descrevia dois tipos de narcisismo, um normal e expectável em crianças pequenas que, bem resolvido e ultrapassado, é importante para o desenvolvimento. O outro, seria a consequência de um primeiro não resolvido, tornando-se patológico. Fromm viria também a fazer esta distinção entre narcisismo saudável e narcisismo patológico, referindo-se inclusive ao primeiro como importante ao nível da sobrevivência.

Compreendendo a Perturbação de Personalidade Narcísica

O termo perturbação de personalidade diz respeito a um grupo de perturbações cujos sintomas fazem parte da estrutura/funcionamento do indivíduo; como este perceciona o mundo e como age em função dessa perceção é baseado em características estruturais consideradas desajustadas em relação à sociedade na qual o indivíduo está inserido. Em relação especificamente à Personalidade Narcísica, esta caracteriza-se por: sentimento de grandiosidade em relação ao próprio; crenças de sucesso, poder ilimitado e de ser especial; expectativas irracionais de ser tratado de forma excecional; padrões de exploração nas relações interpessoais e falta de empatia. Em resumo, pessoas com esta perturbação são geralmente pessoas muito autocentradas, pouco preocupadas com aquilo que os outros sentem e que acreditam que todas as pessoas têm de ser capaz de ver e validar o potencial incomparável que possuem.

Conviver com alguém com traços narcísicos pode ser difícil, viso que estas são pessoas que, não se preocupam com o outro, não têm em consideração os sentimentos de ninguém a não ser os seus, que tornam tudo sobre elas e que se zangam quando não recebem a validação que acham que merecem. Estas são geralmente pessoas que, num primeiro contacto, são extremamente apelativas, dando-nos a sensação de querer ser amigo dela, sendo que quase sempre se tratam de pessoas sedutoras. O desejo de ser idolatrado é tão grande que a tendência inicial é ganhar a admiração dos outros. Claro que depois, os comportamentos mais desadequados se revelam e não é incomum que o charme desapareça para dar lugar a desconforto, irritação e sentimentos de inferioridade quando interagimos com alguém com uma personalidade narcísica.

O Desafio

A maior dificuldade nas perturbações de personalidade é o facto de muitas vezes não gerarem sofrimento no próprio, que por isso não vai percecionar a sua forma de agir como algo problemático ou a melhorar e, sem consciência, não há mudança. Dificilmente alguém com uma perturbação de personalidade e ainda para mais uma personalidade narcísica, conseguirá compreender que possui padrões de pensamento e comportamento que não são ajustados e, por isso, raramente procuram ajuda.

É também importante saber distinguir autoestima de narcisismo, sabendo que a primeira é de extrema importância, é sabermos que somos pessoas com valor, com competências, capacidades, reconhecendo os nossos erros e as nossas falhas, mas trabalhando nelas com compaixão. Já a segunda trata-se de uma forma desajusta de funcionamento que pode não causar sofrimento ao próprio, mas que certamente o causa naqueles que o rodeiam. Reconhecer os momentos em que fui bem-sucedido ao atingir algo, não é narcisismo. Tornar tudo sobre mim, querer ser sempre o centro das atenções e considerar que todas as outras pessoas são, de alguma forma, inferiores a mim, não é autoestima. Muitas vezes o narcisismo surge para tapar uma falha no ego, uma falta de confiança que acaba por ser sobrecompensada com a expressão de um ego inflacionado. Muitos narcísicos são, na verdade, pessoas que carecem de autoconfiança.

Se tens alguém na tua vida que identificas como podendo ser uma pessoa narcísica e se isso te traz sofrimento de alguma forma, o importante é saber estabelecer limites e evitar validar a pessoa nos seus delírios de grandiosidade. Não vale a pena lutar muito contra a forma de funcionamento da pessoa, por aquilo que já foi anteriormente explicado, mas é possível encontrar formas de lidar com esse funcionamento sem que tenha de colocar em causa o meu bem-estar.


O Alquimista1Excerto retirado no Prólogo do livro “O Alquimista” de Paulo Coelho. pegou um livro que alguém na caravana havia trazido. O volume estava sem capa, mas conseguiu identificar o seu autor: Oscar Wilde. Enquanto folheava as suas páginas, encontrou uma história sobre Narciso.

O Alquimista conhecia a lenda de Narciso, um belo rapaz que todos os dias ia contemplar a sua própria beleza num lago. Estava tão fascinado por si mesmo que certo dia caiu dentro do lago e morreu afogado. No lugar onde caiu, nasceu uma flor, que chamaram Narciso.

Mas não era assim que Oscar Wilde acabava a história. Ele dizia que quando Narciso morreu, vieram as Oréaides – deusas do bosque – e viram o lago transformado, de um lago de água doce, num cântaro de lágrimas salgadas.

— Por que chora? — perguntaram as Oréaides.

— Choro por Narciso — disse o lago.

— Ah, não nos espanta que chores por Narciso — continuaram elas. — Afinal de contas, apesar de todas nós sempre corremos atrás dele pelo bosque, tu eras o único que tinha a oportunidade de contemplar de perto a sua beleza.

— Mas Narciso era belo? — perguntou o lago

— Quem mais do que tu poderia saber disso? — responderam, surpresas, as Oréiades. Afinal de contas, era nas tuas margens que ele se debruçava todos os dias.

O lago ficou algum tempo silencioso. Por fim disse:

— Eu choro por Narciso, mas jamais havia percebido que Narciso era belo.

» Choro por Narciso, porque todas as vezes que ele se deitava sobre as minhas margens eu podia ver, no fundo dos seus olhos, minha própria beleza refletida.

‘— Que bela história — disse o Alquimista.

Inês Serôdio

Psicóloga Clínica e autora do artigo “Amores, Paixões e Relações

Imagem Por, Caravaggio, “Narcissuss” (Galleria Nazionale d’Arte Antica)

Notas de rodapé

Notas de rodapé
1 Excerto retirado no Prólogo do livro “O Alquimista” de Paulo Coelho.

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Pintura em Preto e Branco inspirada e que segue o estilo do filme de 1964 "Woman in the Dunes" Previous post Areia Movediça
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