Os raios de sol espreitam, brilhantes, por entre a folhagem verde dos ramos. Espreitam tímidos, ofuscantes. Os ramos balançam ao sabor do vento. A claridade surge como pequenos cristais ofuscantes. Cristais cintilantes num segredo bem guardado. A cor oscila perante a ondulação leve, entre o branco e o azul.
Uma suave música brota do piano de cauda da sala. Os ramos oscilam ao ritmo do piano e os dedos correm as teclas, enfeitiçados. Uma força invisível que magneticamente os atrai. Uma força que lhes corta a respiração, deixando-os ofegantes e exaustos. Doridos e completos. A plenitude da vida preenche-os por dentro. É a plenitude que resvala para as teclas. As teclas fogem-lhe debaixo dos dedos, tomando a proporção da sua própria vida.
Ao longe, o portão range. O ranger interrompe o ar como uma espada erguida. A música eleva o seu tom estridente, frenético. As mãos movem-se pelas teclas. Os dedos misturam-se, perdendo identidade. As luzes do automóvel aproximam-se. Vai escurecendo. O dia segue a sua trajetória em direção à noite. A música ainda se ouve.
Os últimos raios de sol surgem atrás da folhagem. Em tons de laranja ou vermelho. Ofuscante. Quentes. Pequenos cristais reluzentes. O automóvel aproxima-se cada vez mais de casa. As luzes refletem na parede da sala, destacando a sombra do piano e das mãos que o tocam. A música ainda ecoa. Mais serena, como quem adormece.
Se fechar os olhos, os cristais brilham sob o fundo branco. O que perdem na cor alcançam no brilho. Frágeis e consistentes. Os cristais brilham enquanto os sonhos giram ao som da música. Os cristais são reais como se os tocasse nas suas próprias mãos e largasse as teclas do piano.
Os cristais são seus. Tão seus como os raios de sol que espreitaram por entre os ramos e lhe tocaram a pele. Tão seus como as luzes do automóvel que se aproxima da casa e cujas luzes se refletem na parede da sala, destacando a sombra. Tão seus como o piano que as mãos embaladas tocam sem pausas nem interrogações. Tão seus como a música clássica que dos dedos brota e emana todas as emoções que alguma vez sentiu. Nessa magia desconhecida até então.
Os cristais são seus enquanto deles cuidar, junto ao seu coração. Os cristais são doces encantadores da alma. Os cristais são o que agora o comanda. Os cristais são recantos perdidos e agora recuperados. Retinem no esconderijo perfeito até que os encontrem. Encontraram-nos agora como sempre os deixaram. Exatamente como os deixaram. Os cristais são as fantasias de criança e os objetivos de adulto.
Pisados, por anos. Deixados na varanda à chuva. Empurrados para a tempestade da vida. Abandonados para que alguém os pudesse levar como seus. Como se sempre fossem seus. Guardados junto ao coração e perto da alma.
E os cristais permaneceram. Firmes, hirtos e fiéis aos seus propósitos. O desejo sempre lá e os obstáculos na frente. O cansaço nos músculos, a pesar-lhe nas pálpebras. Os ombros derrotados, os membros pendurados em suspenso. Cabisbaixo e no carrossel do dia a dia. Naquele carrossel decrépito sem música nem luz, numa lentidão avassaladora.
Mas foi naquele dia. Naquele dia, o empurrão que lhe deram, a respiração em suspenso e a vida no precipício trouxeram-lhe de volta os cristais. Tão belos como sempre. Brilhantes como nunca. A música que os envolvia e o calor do seu abraço. A voz que lhe pedia para os guardar, para os acarinhar nas suas próprias mãos. Tomá-los como seu legítimo proprietário.
Tomou-os como seus e guardou-os. Guardou-os na gaveta mais preciosa e valiosa que detinha. Guardou-os para sempre junto a si. E, agora, a respiração ofegante por tê-los, para si, nas suas mãos. O sorriso no rosto. O coração quente, acarinhado num abraço para a vida. O rufar de volta ao seu coração. A percussão de volta às veias. Os raios de sol na pele. A luz dos faróis do automóvel refletidos na parede. A música que ecoa alto e lhe adormece o espírito. Os cristais são seus.
Os cristais voltaram a ser seus. Sente o pulsar do coração da Terra e as ondas do mar, sente a brisa fresca pela folhagem verde e os pássaros que nela poisam. Sente as nuvens que passam e as plantas que brotam da terra húmida. Ama-se e ama o que o rodeia. Dançam os dedos pelo piano e a sua alma pela música. Dança o corpo pela música e a música pelos cristais.
Os cristais de volta a casa. Os cristais, sonhos íntimos da vida.
Jurista, Escritora e Autora da obra “A Noite Onde Me Deixaste” e outros textos como “Um Sonho Perdido” e “Meio Ambiente“
Imagem Por, Odilon Redon, “Golden Cell [A Célula Dourada]” (British Museum)
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