Quem nunca questionou o porquê da sua existência, nunca propriamente existiu, dado que a prova da nossa vivência é criticarmos o viver.
Aos finais de tarde, quando o céu se esbate em laranjas, a nostalgia de um passado inexistente atinge-me. O ranger metálico do autocarro soa-me familiar; a orquestra urbana, que pelo vento passa, soa-me a um ruído branco acalentador do meu cansaço. Entro, sento-me e sinto a inércia a puxar-me a alma.
De mente em vazio, o meu redor transforma-se num transe. Do qual, sem aviso, caio perante uma pergunta:
— “Porquê?”
A realidade desmonta-se à minha frente. Peças de xadrez tombam em cacos. O significado de tudo aparenta encontrar-se em nada. O caos, a solidão e a deriva liberam-se por uma pergunta apenas.
Agito a cabeça em negação desses pensamentos e pisco os olhos fortemente. Reparo nas expressões faciais dos passageiros do autocarro. A criança sorri e lambe o vidro, o adulto tenta não gritar ao telemóvel com o patrão, o idoso fica cabisbaixo pela dor nas costas de carregar o saco das compras. Tudo parece tão importante.
— “Porquê?”
A assombração retorna. A questão que me traz melancolia; uma sensação de vazio e incompletude. O coração parece explodir e o meu cérebro pulsa. O motivo de viver, o motivo de tudo parecer tão importante, o motivo de sentir, o motivo de haver uma constante aparência ou preocupação, o motivo de haver cansaço. A vida desmembra-se perante os meus olhos, outra vez.
Retorno a concentrar-me nas pessoas. De todos os passageiros, saliento algo que eles têm em comum: a desesperança. Todos possuem o desespero de viver as vidas que vivem. A exaustão que rebobina no seu quotidiano fá-las ter um ar inanimado.
A mente quotidiana pouco espaço tem. E o pouco que existe acaba por ser ocupado pela rotina e pela superficialidade diária. O porquê não se ouve – tal não é o desinteresse e a sala de espera para a morte. O questionamento e a evolução passaram a momentâneo prazer e constância.
— “Porquê?”
Ouço a pergunta novamente. Não vinda, desta vez, do meu cérebro – mas da criança que outrora lambia o vidro imundo.
E, de repente, todo o autocarro se desesperava ainda mais em pedidos de silêncio – não pelo adulto e o patrão ou pelo **barulho do teclar no telemóvel, mas pela pergunta da criança.
Ao levar com brados, ela ficou também desesperada e cabisbaixa. Os seus olhos arregalados contavam o número de postes de luz pelas ruas. Estava ela desconsolada, com a desconsolação de não saber nada, com a desconsolação do porquê.
Imagem Por, Olga Boznańska, “Portrait of Paul Nauen” (National Museum in Kraków)
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