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Um copo de vinho e uma meia-dose de solidão. São estas as companhias de Vitória,  quando se senta à mesa, naquela manhã fria e de nevoeiro. Também ela se sente assim,  enrugada e cinzenta como o tempo.

Olhando para trás, embora em sentido figurado, constata que nem tudo foi mau. Apesar  dos contratempos e dos dissabores, à parte as mágoas e afins, houve um tempo em que Vitória  foi uma menina de faces coradas, radiante e doce, sempre pronta a distribuir sorrisos a quem  se cruzava consigo na rua.

Vitória passava as férias de Verão com os avós na casa de campo que estes mantinham  numa aldeia recatada e encantadora do interior. Nesses dias, que recorda como os mais  preciosos não só da sua infância mas de toda a sua vida, ela imaginava muitos destinos para o  seu futuro. Por vezes, queria ser cantora; a sua voz ecoando pelos campos fora, levada pelo  mesmo vento que fazia oscilar o bonito vestidinho florido com aroma a alfazema. Noutras, fingia  ser lavadeira e levava o alguidar à cabeça – vazio, mas a fazer de conta que continha roupa -,  para ir brincar no tanque de pedra da aldeia, sonhando casar com um caixeiro-viajante e vir a  ter um par de meninos com as faces rosadas como as suas.

Ai como é bom ser criança! As crianças são mais do que seres livres e puros. Têm, sem  saber, o sentido prático da vida que todos nós deveríamos ter independentemente da nossa  idade. Para elas, há o caminho, a esperança e a porta aberta ao rol das possibilidades. Escolhem,  sem pensar muito no assunto e, seja qual for a consequência de tal decisão nem por isso  deliberada, têm a força necessária para voltar a sorrir depois da tempestade.

Todos nós já fomos crianças. E agora, sentada à mesa, de frente para a janela da qual se  vê um sol envergonhado a querer espreitar por entre as nuvens, Vitória tem como companhia  um copo de vinho e meia-dose de solidão. E só tem meia, porque a outra metade é feita de  sonho. E porque sem os sonhos não somos nada.

Vitória está velha. O seu aspecto é o de quem já carregou muito às costas, as suas faces  são hoje macilentas e encovadas e os seus olhos encerram muitas vidas na dimensão afogada  de uma só, que é a sua.

Mas, no seu coração, no cantinho remoto ao qual chamam “passado”, ainda está aquela  menina doce, de faces coradas e olhar resplandecente. E, com ela, a esperança. A esperança que  faz Vitória vencer. A esperança que faz tantas mulheres e tantos homens e tantas gentes como  ela, darem alento e voz e vida a cada dia, mesmo que este não seja tão risonho como o anterior.

Vitória não esquece quem foi, não esquece a menina que a fez chegar ali, até àquele  lugar na mesa, de frente para a janela, a contemplar mais um dia que nasceu,  independentemente do boletim meteorológico. Ninguém deve esquecer o que já foi,  principalmente se nesse ontem se foi tão feliz.

Nádia Carnide Pimenta

Escritora e Autora das obras, “Da Ponte P’ra Cá” e “Diamante do Sul

Imagem Por, Vilhelm Hammershøi, “An old woman” (Hirschsprung Collection)

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