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O jantar prolongou-se pelo tempo e um ar ameno expirado pelas janelas, que demonstrava um verão em antecipação, atraiu-nos à varanda com as suas cadeiras, que mais se aproximavam da forma confortável das espreguiçadeiras. O café deu fio para a meada das conversas, umas mais redundantes, outras mais íntimas e íamo-nos deixando absorver pela noite, como ela fazia com todas as porções do mundo.

O café já se tinha ido à muito e as palavras começaram a escassear, até nos contentarmos não só pelo embalo acolchoado das cadeiras, mas também pela altura daquele último andar. O breu da noite destinou os olhares a lançarem-se para o panorama noturno, dividido entre as estrelas a brilhar no céu, etéreas e distantes, e as luzes do quarteirão, mundanas e próximas, que se alteravam conforme as vivências quotidianas.

A quietude foi-se adensando e imergimos, por uma fração de segundo, sob a forma de um transe melancólico, até uma nova respiração nos puxar de novo à superfície da realidade e perguntarmos se alguém, como nós, também estaria fixo nas estrelas, ou nos acontecimentos terrenos. A interrogação havia-nos direcionado para a fachada dos prédios: talvez não soubéssemos muito mais acerca das presenças que observávamos, do que das estrelas tão longe…

Parecia que a vida nos lembrava como, no que toca a narrativas, o hábito nos acomoda ao lugar de protagonistas, enquanto, em segundo plano, outras existências se movimentam desfocadas. O semblante translúcido dos prédios transcendia-se numa montra do desenrolar complexo dessa mesma vida, ali arrumada simples e categoricamente.

Naquele momento, havíamos experienciado o limiar da efemeridade, como que um relâmpago incapaz de se manter na continuidade, afinal o efémero não é se não o veículo para levantar o véu sobre o oculto. A casualidade dera-nos a consciência de que todos se movimentam, carregando o que encontraram e a vontade de procurar algo mais…

Os olhares continuaram a embeber-se daqueles fragmentos, pessoas e coisas que não lhes pertenciam, até a distância reconstrui-los numa realidade só nossa: o halo da televisão pode guiar a solidão pela noite, ou trazer o descanso do trabalho fastidioso; o candeeiro sobre a secretária pode esperar por um futuro melhor, ou cismar no arrependimento de uma escolha; o vulto curvado pela cama pode contar uma história de encantar, ou tentar simplificar o que não deveria ser explicado; alguém bebe o seu café na varanda pelo aconchego do hábito, ou pelo avivar de uma memória.

Cada janela encerrava pormenores tão únicos e mantinha tantos mais à margem dos sentidos, que se criava uma aura de intriga, mas uma intriga bela e fascinante, talvez num conforto de sentir que, como nós alguém também estava acordado.

É curioso pensar nas versões de nós próprios, que povoam a imaginação dos demais e na variedade que essas figuras podem tomar. No fundo, qualquer acontecimento rege-se segundo um jogo probabilidades, combinadas por tempo e espaço intrincando-se constante e sucessivamente, num resultado só reconhecido no puro presente.

Pensando bem, por entre um leque de infinidade, nós podíamos nem ter estado ali, o cruzamento com aquela imagem, entre nós os dois e connosco próprios poderia nunca ter acontecido. Uma centelha de oportunidade mais ao lado, no segundo ou no centímetro e o fluxo das coisas nunca me teria feito questionar o ato de existir da mesma forma.

Cada janela encerrava pormenores tão únicos e mantinha tantos mais à margem dos sentidos, que se criava uma aura de intriga, mas uma intriga bela e fascinante, como que num conforto de sentir, que alguém também estava acordado, como nós.

Nós recolhe-mo-nos e a noite continuou a observar cada um a tecer o seu novo passo. Quantas vezes resvalámos numa ignorância do afastamento, que por vezes não admite cada pessoa como uma combinação irrepetível de escolhas e acontecimentos…

Rúben Marques

Escritor. Autor do texto “Carta ao Futuro Eu

Imagem Por, René Magritte, “Good Fortune [La Bonne Aventure]”

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