“— Já passou, está tudo bem! — Estará mesmo?”
“— Olá! Que tal foi o teu dia? Correu tudo bem? — Ah, sim, tudo normal, obrigado!”
Tudo normal, porque efetivamente nada de errado aconteceu ou tudo normal… Porque já normalizamos automaticamente toda uma série de eventos que não nos fazem bem?
É mais fácil falar de “eventos que não nos fazem bem” do que de “eventos traumáticos”, verdade? E não é necessariamente o mesmo. Nem tudo o que é difícil de vivenciar se converte em trauma, até porque, na verdade, trauma não é o que acontece: é o impacto negativo que aquilo que aconteceu deixou em ti. É reviveres o que aconteceu no passado como se ainda estivesse a acontecer. É sentires que és refém do que (te) aconteceu.
Repara: O “o que aconteceu” refere-se ao evento em si. O evento causador de trauma pode ser um acidente, perda de um ente querido, uma situação abusiva, um momento em que te sentiste profundamente desamparado, posto em causa ou invalidado, ou qualquer experiência que é ameaçadora à tua segurança emocional ou física. Já quando falamos “do impacto daquilo que aconteceu” referirmo-nos a resposta única e individual ao evento em si. Duas pessoas podem vivenciar o mesmo evento, mas as suas respostas emocionais e como lidam com as consequências podem ser muito diferentes. E inclusivamente a mesma pessoa pode estar exposta ao mesmo evento em momentos diferentes da sua vida, e com diferentes variáveis envolvidas e recursos disponíveis (ou não!) e isso marcar como o evento é sentido e, consequentemente, o impacto que despoleta.
Perante um evento negativo (que pode despertar em nós algum trauma), todos desenvolvemos mecanismos de ajustamento. O famoso: “estou a lidar!”. Mecanismos esses que podem ser adaptativos, porque conduzem a uma resposta saudável, como desenvolver competências, procurar suporte emocional, desenvolver hábitos de autocuidado e procurar apoio profissional ou, pelo contrário, desajustados, tais como, de mecanismos de evitamento, isolamento ou até desenvolvimento de adições, dependências e para o surgimento de sintomatologia persistente associada à ansiedade e depressão (entre outros).
Fica então muito evidente que quando enfrentamos algo com impacto emocional, o nosso cérebro reage de maneiras específicas que influenciam as nossas emoções e comportamentos. Ajuda imaginarmos o nosso cérebro como um sistema de alarme: quando algo assustador acontece, o nosso sistema de alarme – sistema nervoso – entra em ação. É aqui que o nosso coração dispara e prepara o nosso corpo para lidar com a situação: “Alerta! Estás em perigo!”. Nestas situações, o sistema nervoso simpático é ativado, desencadeando a resposta de “congelamento, luta ou fuga”. O corpo prepara-se para lidar com a ameaça iminente e, nesse momento, os sentidos ficam mais despertos, a atenção é exclusivamente focada no perigo e as funções consideradas não-essenciais para o momento ficam suprimidas.
São mobilizadas estruturas como a amígdala, que desempenha um papel crucial ao nível do reconhecimento e processamento de emoções, e o hipocampo, responsável por guardar memórias. Quando algo de elevado impacto negativo ocorre, a nossa capacidade de recordar e entender o que aconteceu pode ser afetada, causando confusão e desconforto. Outra parte extremamente importante é o córtex pré-frontal, que nos ajuda a regular emoções. Contudo, em situações tão avassaladoras, essa parte pode ter dificuldade em fazer o seu trabalho, o que torna mais complicado controlar emoções como a tristeza, raiva ou medo. Estas emoções têm como objetivo alertar-nos sobre a possível ameaça e mobilizar-nos para a ação. Além deste impacto, as substâncias químicas produzidas e libertadas no cérebro ficam desequilibradas nestes momentos, contribuindo para ativar ansiedade ou tristeza. Vive-se um estado de hipervigilância, onde estamos constantemente atenta a sinais de perigo, garantindo a sobrevivência, mas, simultaneamente, submetendo-nos a elevados níveis de stress continuado que podem desencadear consequências ao nível da saúde mental, como quadros de ansiedade e depressão. O modo sobrevivência também pode impactar como as memórias são armazenadas a médio e longo prazo. A ativação intensa do sistema nervoso pode resultar em memórias mais vívidas e emocionalmente ativadoras, potencialmente traumáticas.
Isto parece de mais para ser considerado “normal”, não é? É pesado, tem muito impacto no dia a dia e pode acabar por nos condicionar negativamente. Ainda que esta resposta biológica seja uma parte crucial da experiência humana perante o perigo, absolutamente necessária à sobrevivência, também pode ter implicações significativas na saúde mental a longo prazo. A boa notícia é que o cérebro é incrivelmente adaptável, tem uma capacidade de plasticidade surpreendente, e, por isso, é sempre possível mobilizar recursos para superar o impacto negativo daquilo que aconteceu. Assim como um músculo se fortalece com o tempo, o cérebro tem a capacidade de se adaptar e encontrar maneiras de lidar com experiências difíceis. A intervenção psicológica focada na regulação do sistema nervoso permite desenvolver estratégias e recursos adaptativos, ressignificando experiências.
Por agora, sê gentil e cuidadoso com como te tratas. Respeita os teus limites, ouve as tuas necessidades e prática a autocompaixão.
Deixa-me tentar outra vez:
“— Olá! Que tal foi o teu dia? Correu tudo bem? — Não correu tudo bem, mas estou a fazer o que está ao meu alcance para ficar tudo bem em breve.”
Rita Angélica Raínho
Psicóloga Clínica e Terapeuta de EMDR. Autora do artigo “Expandir o Meu Potencial”
Imagem Por, René Magritte, “Memory (1942)”
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