“Traumas? Eu não tenho traumas. Pronto, aconteceram umas coisas menos boas no passado, mas quem nunca, não é? Também não exageremos, não é caso para tanto” – Ou será?
Quando ouvimos falar de experiências traumáticas muito facilmente o nosso cérebro gera alguma resistência de forma automática. Associamos, espontaneamente, trauma a algo catastrófico, inegavelmente grave. Algo de tal forma danoso que não se relaciona com as nossas existências, porque afinal, “por mais que tenha vivido episódios difíceis, estou aqui, não foi nada de mais!”. Esquecemos, no entanto, que todas as nossas experiências prévias, especialmente as mais precoces, têm um impacto considerável na forma como nos organizamos internamente. E, como tal, eventos que temos como menores, irrelevantes e até mesmo banais, podem encontrar-se a desempenhar uma influência significativa na pessoa que somos hoje.
Tudo aquilo que (nos) acontece repercute-se emocionalmente, gera um impacto e faz-nos construir, para além de memórias, crenças sobre nós próprios, sobre os outros e sobre o mundo em geral. É através desse sistema de crenças que passamos a fazer a leitura e interpretação do nosso meio, dos acontecimentos do nosso dia-a-dia, e de nós próprios.
Centremo-nos, por agora, nas crenças que nutrimos sobre nós próprios. Quando falo de crenças neste contexto, refiro-me a pensamentos, ideias ou convicções profundamente enraizadas que mantemos a nosso próprio respeito e que estão na base do nosso autoconceito. Essas crenças podem ter uma conotação positiva ou negativa e, uma vez que constituem o modo como nos vemos, percebemos e o que pensamos sobre nós próprios, acabam por moldar a interpretação de todas as nossas experiências.
Na Terapia EMDR (sigla para ‘Eye Movement Desensitization and Reprocessing’), as crenças desempenham um papel fundamental e é evidenciada de como elas se relacionam a eventos traumáticos passados. Reconhecemos, portanto, que traumas vivenciados no passado repercutem-se no presente através do impacto das crenças negativas e disfuncionais que dele derivam. Estas crenças podem ser extremamente prejudiciais e limitantes, com impacto negativo ao nível da autoestima, autoconfiança, funcionamento emocional e comportamento.
Mesmo quando não há uma memória concreta sobre o evento traumático, muitas vezes o impacto negativo do mesmo prevalece. Isto acontece porque a intensidade emocional do evento foi de tal forma significativa que gerou uma alteração do funcionamento cerebral, havendo dificuldade em processar a informação e o conteúdo experienciado naquele momento.
E é aqui que começam a formar-se bloqueios emocionais, que alteram os nossos padrões de comportamento e pensamento, tornando-os disfuncionais e afastando-nos da pessoa que queremos e precisamos de ser. Estes bloqueios, por sua vez, uma vez gerados, são sucessivamente estimulados e reforçados por acontecimentos identificados pelo nosso cérebro como semelhantes, aquilo que frequentemente designamos como gatilhos (triggers). E neste ponto torna-se inegável que o evento passado se encontra a condicionar e a afetar o bem-estar emocional e a qualidade de vida de quem o vivenciou.
De forma concreta, por exemplo, alguém que experimentou um evento traumático na infância, como a falta de suporte e validação emocional, frequentemente desenvolve crenças negativas sobre si, como “Eu não sou válido” ou “Eu não sou suficiente“. Conseguimos facilmente imaginar como alguém que nutre estes pensamentos sobre si próprio irá condicionar o seu comportamento, a sua tomada de decisão e até mesmo a sua liberdade de escolha. Em poucas palavras: tornámo-nos o resultado do que (nos) aconteceu e não quem desejamos, em consciência, ser. Porém, isto não tem de ser assim. Não tem de permanecer desta forma a partir do momento em que percebemos que o condicionamento que experienciamos se encontra a prejudicar a nossa saúde mental e emocional.
À luz da Terapia EMDR, que se propõe a trabalhar o indivíduo de modo que este seja capaz de identificar as crenças negativas que nutre sobre si mesmo, é possível reavaliar e reestruturar as mesmas, substituindo-as por outras mais adaptativas, saudáveis e empoderadoras, que conduzam ao desenvolvimento pessoal contínuo e à expansão de todo o nosso potencial.
Partindo do exemplo anterior, no caso de alguém que desenvolveu e apresenta a crença negativa “Eu não sou suficiente” tem oportunidade de, com recurso à Terapia EMDR, reconstruir essa crença, substituindo-a por uma mais positiva, como, por exemplo, “Eu sou bom como sou”. Percebemos então que, se queremos nutrir um autoconceito positivo e protetor, é fundamental cuidar das crenças que se geram, consolidam e sustentam-se na nossa mente. A Terapia EMDR permite rever essas crenças, olhando-as sob outra perspetiva, pelo que podemos afirmar que a experiência emocional prévia é, dessa forma, ressignificada, através da dessensibilização das crenças e memórias traumáticas e reprocessamento das mesmas.
Quando conseguimos progressivamente fazer a substituição de crenças negativas por outras, adaptativas, saudáveis e realistas, os sintomas que eram sustentados pelas crenças negativas são, também eles, aliviados. Dessa forma, os bloqueios emocionais que se faziam sentir são neutralizados e as suas consequências e repercussões limitantes deixam de se fazer notar. Alguns dos benefícios mais reportados passam pela diminuição de sintomas associados a ansiedade, depressão e dificuldades ao nível da autoestima, autoconceito e autoconfiança.
É nesta medida que podemos afirmar que, muitas das vezes, a chave para uma vida plena, livre de condicionamentos e de bloqueios emocionais reside no reprocessamento de crenças negativas. Essa transformação estrutural proporciona uma sensação de empoderamento, liberdade de decisão e autonomia, essenciais para uma existência plena e gratificante.
Por vezes, não é suficiente reconhecer a influência das experiências que vivenciamos no passado naquilo que somos. Não é suficiente saber que replico um comportamento que não me protege porque “vivi uma experiência abusiva” ou “experienciei ausência de validação e suporte emocional no passado”. Não basta saber “de onde vêm as coisas” e “porquê é que faço o que faço”. Importa reconhecer que não me faz bem perpetuar determinados comportamentos, sobretudo quando escolho, em consciência, fazer diferente… mas, na prática, continuo a replicar o padrão. E sobretudo, estar consciente de que, para isso, preciso de desenvolver estratégias que me permitam relacionar-me melhor comigo próprio, com o que aconteceu no meu passado, com como isso molda o meu presente e como decido que não continuará a limitar futuramente.
Não é sobre o que (te) aconteceu. É sobre o que decides fazer com isso. E tu podes decidir fazer diferente!
Rita Angélica Raínho
Psicóloga Clínica e Terapeuta de EMDR. Autora deste artigo sobre “Superar Bloqueios Emocionais com a Terapia EMDR”
Imagem Por, Caspar David Friedrich, “Two Men Contemplating the Moon” (Metropolitan Museum of Art)
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