Perturbações do Neurodesenvolvimento: Uma Sentença ou Um Desafio?

Muitos pais/cuidadores chegam à consulta e começam a relatar sintomas que observam no seu filho, sem saberem o que muitos daqueles sintomas e sinais implicam – “ele/a faz isto, mas deve ser normal!”, “ele/a faz aquilo, mas depois para!”. Quando alertados para a possibilidade de uma Perturbação do Neurodesenvolvimento, para muitos dos cuidadores é como se o seu mundo parasse, como se nada mais fizesse sentido; outros culpabilizam-se por nunca suspeitarem antes; outros ficam sem reação; há ainda aqueles pais que, no imediato, perguntam o que podem fazer e que terapias devem procurar para ajudar o seu filho.

Comecemos então por analisar as perturbações do neurodesenvolvimento. As perturbações do neurodesenvolvimento correspondem a um grupo de perturbações que, surgem no período do desenvolvimento; estas manifestam-se cedo (em algum dos casos antes da criança iniciar o seu percurso escolar) caracterizando-se por défices do desenvolvimento que dificultam o funcionamento pessoal, social, académico e ocupacional¹American Psychiatric Association. (2014). Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (5ª ed.). Lisboa: Climepsi Editores.. Não é de estranhar comorbilidades entre perturbações do neurodesenvolvimento, isto é, a ocorrência de perturbações em simultâneo²Thapar, A., Cooper, M., & Rutter, M. (2017). Neurodevelopmental disorders. In The Lancet Psychiatry (Vol. 4, Issue 4, pp. 339–346). Elsevier Ltd. https://doi.org/10.1016/S2215-0366(16)30376-5.. A Perturbação do Espectro do Autismo, a Perturbação de Hiperatividade/Défice de Atenção, Perturbação do Desenvolvimento Intelectual, Perturbação da Linguagem ou a Perturbação de Aprendizagem Específica são apenas alguns exemplos destas perturbações, sendo também aquelas mais conhecidas pela população.

Estas perturbações usualmente afeta mais rapazes do que raparigas e, apesar de a investigação mostrar um forte contributo por parte da genética³Thapar, A., Cooper, M., & Rutter, M. (2017). Neurodevelopmental disorders. In The Lancet Psychiatry (Vol. 4, Issue 4, pp. 339–346). Elsevier Ltd. https://doi.org/10.1016/S2215-0366(16)30376-5., a origem das mesmas depende de múltiplos fatores e não apenas da carga hereditária que cada criança carrega consigo desde a conceção. Por esse mesmo motivo, os pais não se devem sentir culpados/pensar que “o meu filho só é assim por minha causa”. O meio envolvente e a estimulação que uma criança recebe desse mesmo meio desempenham também um papel crucial no seu desenvolvimento.

Apesar da condição os poder acompanhar ao longo da vida, esta não deve ser encarada como uma sentença. É natural que estas ditem a necessidade de um acompanhamento continuado – seja através da Psicologia ou de outras valências, como a Terapia da Fala, Terapia Ocupacional ou outras terapias que se considerem adequadas. É este mesmo acompanhamento (que quanto mais for precocemente iniciado melhor) que poderá ajudar a minimizar (e em alguns casos colmatar) as dificuldades inicialmente avaliadas por uma equipa especializada, contribuindo para uma melhoria da qualidade de vida destas crianças.

Nas palavras de Cláudia Bandeira de Lima, Psicóloga em Neurodesenvolvimento, os pais devem ser considerados coterapeutas, pois eles são imprescindíveis para um melhor desenvolvimento dos seus filhos⁴Cláudia Bandeira de Lima (2016). Perturbações do neurodesenvolvimento. Vital Health, Saúde Primeiro. Retirado em março de 2023 de Viral Health.. Sem o seu contributo, disponibilidade e empenho – no sentido em que eles também participem ativamente no processo e trabalhem em casa com os seus filhos – a caminhada realizada com uma criança com uma Perturbação do Neurodesenvolvimento será muito mais difícil.

Os relatos por parte dos pais são diversos. Muitas das vezes, a resposta mais rápida para acesso às demais terapias encontra-se no setor de saúde privado – no final do mês, e existindo crianças com múltiplas terapias, o desgaste financeiro é notório no orçamento familiar. Por outro lado, a disponibilidade temporal também é posta à prova e os seus limites constantemente testados – refiro-me aos horários das terapias que não são compatíveis com os horários do emprego, estando constantemente pais e mães numa dança de “hoje levo eu” e “amanhã levas tu”, como forma de nenhum dos dois ser prejudicado no emprego.

Numa correria diária de chegar a horas e de estar presentes em todo o lado, muitas das vezes os pais esquecem-se de uma coisa: eles mesmos. O autocuidado não é um luxo e para poderem prestar o maior apoio aos seus filhos, é necessário que eles próprios se encontrem bem, de modo a estarem totalmente disponíveis nos momentos em que mais são precisos.

São diversas as condicionantes na vida de uma família que abraça uma criança com uma perturbação do neurodesenvolvimento. Como visto anteriormente, vai desde as próprias características e dificuldades da criança até a questões económicas e de disponibilidade por parte dos cuidadores, seja do ponto de vista financeiro, temporal e/ou mental. Podemos então dizer que as perturbações do neurodesenvolvimento são um desafio? Certamente. Mas nunca uma sentença!

Imagem Por, Gino Severini, “The Accordion Player [Bohémien Jouant de L’Accordéon]” (Museo del Novecento)