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Muitos casais acreditam que ter filhos pode ser a solução para os seus problemas conjugais. Contudo, será que esta crença tem fundamento real? E quais são as implicações desta conceção para a dinâmica familiar?

A origem do mito

Os filhos têm sido vistos como uma extensão natural de um relacionamento amoroso. São frequentemente considerados como um símbolo de amor e um testemunho do compromisso mútuo. Esta perceção pode ser a raiz da ideia de que ter filhos pode consolidar e reparar relações fragilizadas. Esta é, sem dúvida, uma crença que remonta a eras passadas, onde a família era vista não apenas como um núcleo afetivo, mas também como uma unidade económica e social.

Contexto Histórico

Nas sociedades tendencialmente patriarcais, o sucesso e a estabilidade de uma família eram frequentemente medidos pela sua descendência. Ter filhos era sinónimo de continuidade de linhagem, de mão-de-obra para os trabalhos agrícolas e garantia de cuidados na velhice. Dentro deste paradigma, ter filhos não era apenas uma escolha, mas uma necessidade.

Culturalmente, muitas sociedades valorizavam a procriação como um dever conjugal e um símbolo de fertilidade. Em algumas culturas, a incapacidade de ter filhos era vista como um fracasso ou maldição. Consequentemente, acreditar que os filhos poderiam fortalecer o vínculo matrimonial tinha raízes não apenas na necessidade prática, mas também em profundas crenças culturais.

A procura de Significado e Preenchimento

Do ponto de vista psicológico, é possível que casais de eras anteriores, assim como muitos dos casais de hoje, procurassem nos filhos um sentido de propósito e preenchimento. Se existissem lacunas emocionais ou distância no relacionamento, a chegada de um filho poderia ser vista como uma forma de preencher esse vazio, trazendo um novo foco para a vida relacional e unindo o casal em torno de um objetivo comum.

Evolução das Dinâmicas Familiares

Com o passar do tempo, as funções e estruturas familiares evoluíram. No entanto, muitas dessas crenças antigas persistiram, embora o contexto tenha mudado. Na era moderna, onde a independência económica e a realização pessoal ganharam destaque, o mito de que ter filhos pode resolver problemas conjugais persiste, mas muitas vezes mascarado por novas justificações e idealizações.

Antes da chegada de um filho, o casal opera principalmente em função um do outro. Com a chegada de uma criança, surgem novos papéis: mãe, pai, e cuidadores principais. Esta reconfiguração pode ser desafiante, pois exige adaptação a responsabilidades inéditas e a uma nova rotina.

A divisão das responsabilidades é também uma problemática atual. Paul Watzlawick argumentou que a comunicação é essencial para a compreensão e definição clara de expectativas. Esta noção é particularmente relevante quando se trata de dividir responsabilidades parentais. Quem acorda a meio da noite? Quem cuida das refeições?… Estas são decisões que requerem uma comunicação clara e compromisso mútuo.

A chegada de um filho pode também influenciar a relação com a família alargada, como avós, tios, primos… Estes elementos podem tornar-se recursos valiosos de apoio, mas também podem surgir tensões se houver discordância sobre métodos de educação e cuidado.

Esther Perel tem observado na sua prática clínica que, enquanto a chegada de um filho pode trazer uma nova dimensão de intimidade ao casal, também pode criar desafios. O cansaço, a gestão do tempo e as responsabilidades podem diminuir os momentos de conexão. Por isso, é crucial que o casal encontre formas de manter a chama da relação, dedicando tempo um ao outro.

Além disso, cada elemento da família cresce e muda com a chegada de um novo membro. Enquanto os pais aprendem e adaptam-se aos seus novos papéis, a criança também evolui, passando por diferentes fases de desenvolvimento. É essencial haver espaço para o crescimento individual, mas também para o desenvolvimento conjunto, fortalecendo os laços familiares.

As dinâmicas familiares são fluidas e estão em constante evolução. A chegada de um filho pode ser um catalisador para mudanças profundas, requerendo adaptação, compreensão e, acima de tudo, comunicação eficaz. Ao reconhecer e abraçar estas transformações, as famílias podem fortalecer os seus laços e criar um ambiente enriquecedor para todos os seus membros.

O Papel dos Filhos no Sistema Familiar

A família funciona como um sistema interligado, onde cada membro tem um papel e influência os restantes membros. Neste contexto, pais e filhos desempenham funções específicas que influenciam e são influenciadas pela dinâmica familiar.

Filhos como agentes de mudança

A chegada de um filho é um evento transformador. O sistema familiar, que até então poderia ter um certo equilíbrio, precisa adaptar-se a esta nova realidade. Isso implica reajustar rotinas, responsabilidades e a distribuição de atenção e recursos.

Estabelecimento de novos papéis

Nesta fase da transição para a parentalidade, os pais enfrentam a tarefa de se reinventar nos seus novos papéis de mãe e pai. Esta transição pode trazer sentimentos ambivalentes, desde a alegria e realização até ao medo e insegurança.

Triangulação e alianças

Murray Bowen falou sobre a ideia de “triangulação”. Quando surgem tensões entre o casal, um dos parceiros pode, inconscientemente, envolver o filho como uma espécie de aliado, criando uma dinâmica triangular. Esta triangulação pode servir como uma distração temporária dos problemas do casal, mas a longo prazo pode criar outras complicações.

Espelho Emocional

Os filhos, com frequência, refletem as emoções e tensões do ambiente familiar. Se o clima em casa é de stress ou conflito, as crianças podem manifestar essas problemáticas inerentes à dinâmica familiar através de comportamentos ou dificuldades emocionais.

Expectativas e Projeções

Muitos pais, muitas vezes inconscientemente, projetam nos filhos as suas próprias aspirações não realizadas ou expectativas. Esta carga pode ser difícil para a criança, que pode sentir que precisa cumprir certas expectativas para ganhar amor e aprovação.

Fonte de União… e Tensão

Os filhos podem, sem dúvida, trazer momentos de união e alegria para a família. Por outro lado, as responsabilidades e desafios da parentalidade podem também intensificar tensões preexistentes ou criar novos conflitos.

Influência Recíproca

John Gottman observou a reciprocidade na relação entre pais e filhos e concluiu nos seus estudos que o comportamento dos pais influencia o comportamento dos filhos e vice-versa. Por isso, é essencial que os pais estejam conscientes da interdependência existente nesta relação.

Portanto, a verdade é que a parentalidade traz consigo sim o potencial de enriquecer imensamente o sistema familiar, mas também traz desafios e complexidades. É crucial reconhecer o papel multifacetado que os filhos desempenham na dinâmica familiar e os múltiplos fatores que influenciam a sua integração na família.

Expectativas vs. Realidade: A Maternidade/Paternidade e o Relacionamento Conjugal

Quando se fala em ter filhos, muitas vezes surgem imagens idealizadas de uma família feliz, de momentos de ternura e cumplicidade. Estas imagens, cultivadas por gerações e reforçadas pelos media, podem criar expectativas que contrastam fortemente com a realidade vivida por muitos casais. Vejamos alguns exemplos:

  • Elo que fortalece:
    • Expectativa: Muitos casais acreditam que a chegada de um filho irá fortalecer o elo entre eles, funcionando como uma “cola” que irá unir ainda mais o casal. Imaginam momentos de cooperação, onde ambos partilham responsabilidades e desfrutam da alegria de criar um ser juntos.
    • Realidade: Enquanto a chegada de um filho pode, de facto, trazer momentos de cumplicidade, também introduz novas fontes de stress. A gestão das responsabilidades parentais, as noites mal dormidas e os desafios de conciliar a vida profissional com a vida pessoal podem criar tensões adicionais no relacionamento.
  • Resolução de Conflitos Preexistentes:
    • Expectativa: Existe a crença de que o amor e a dedicação necessários para cuidar de um filho podem “sobrepor-se” ou até mesmo resolver conflitos anteriores no relacionamento.
    • Realidade: Os conflitos não resolvidos tendem a persistir ou até intensificar-se com a chegada de um filho. Esther Perel observou que os casais frequentemente projetam nos filhos dinâmicas não resolvidas entre eles, complicando ainda mais a situação.
  • Papéis claramente definidos:
    • Expectativa: Muitos acreditam que, ao tornar-se pais, os papéis na relação se tornarão mais claros e definidos, proporcionando uma sensação de propósito e direção.
    • Realidade: A maternidade e paternidade, na realidade contemporânea, vêm com uma série de desafios e ambiguidades. A negociação de papéis (quem cuida da criança, quem gere as finanças, etc.) pode ser uma fonte adicional de conflito.
  • Intensificação da Intimidade Emocional:
    • Expectativa: Muitos casais sentem que ter um filho irá aproximá-los emocionalmente, criando uma conexão mais profunda.
    • Realidade: Embora alguns casais realmente sintam uma conexão emocional mais intensa após o nascimento de um filho, outros podem sentir-se emocionalmente distantes. A gestão da parentalidade pode, por vezes, deixar pouco espaço para a intimidade do casal.
  • Validação Social:
    • Expectativa: Em muitas culturas, ter filhos é visto como o “próximo passo” natural após o casamento. Isso pode criar a expectativa de que ter filhos trará validação social e aceitação.
    • Realidade: A pressão social pode, por vezes, levar os casais a tomar decisões prematuras. Posteriormente, podem sentir-se sobrecarregados pelas responsabilidades, lamentando não terem avaliado a decisão com mais profundidade.

Confrontar a realidade com as expectativas é um exercício crucial para os casais. Reconhecer que a parentalidade é uma jornada com altos e baixos, e que não é uma “solução mágica” para problemas relacionais, é essencial para uma abordagem realista e saudável da mesma.

Impacto nos Filhos: o reflexo das relações parentais

Os filhos, como se costuma dizer, são como “esponjas”. Isto quererá dizer que absorvem e refletem os ambientes e interações familiares a que estão expostos. O estado do relacionamento parental tem implicações profundas no desenvolvimento emocional, social e cognitivo das crianças. Vejamos como:

Modelagem relacional

As crianças modelam os seus futuros relacionamentos com base nas interações que observam entre os pais. Se neles observam respeito, compreensão e comunicação aberta, é provável adotarem esses padrões nas suas próprias relações. Por outro lado, a exposição constante a conflitos e tensão pode levar ao desenvolvimento de padrões relacionais disfuncionais na idade adulta.

Segurança Emocional

A estabilidade do relacionamento parental proporciona uma sensação de segurança nas crianças. Quando os pais se sentem emocionalmente conectados e seguros na sua relação, são mais capazes de fornecer um ambiente familiar no qual os filhos se sentem amados, valorizados e seguros.

Desenvolvimento da Autoestima e Identidade

Paul Watzlawick menciona que a comunicação não é apenas sobre palavras, mas também sobre comportamentos e emoções transmitidas na relação. Crianças que crescem num ambiente onde os pais se validam mutuamente tendem a desenvolver uma autoestima mais saudável. Elas veem-se a si mesmas como dignas de amor e respeito, moldando uma identidade forte e positiva.

Stress e Resiliência

Crianças expostas a relacionamentos instáveis muitas vezes desenvolvem mecanismos de coping para lidar com o stress que podem ser disfuncionais. Em alguns casos, podem tornar-se extremamente resilientes e adaptáveis. No entanto, se a exposição ao stress for prolongada, pode também conduzir a problemas emocionais, comportamentais e de aprendizagem.

Expectativas Futuras e Escolha de Parceiros

Conforme as crianças crescem e começam a formar os seus próprios relacionamentos, as dinâmicas que observaram em casa tornam-se um ponto de referência, consciente ou inconsciente, o que pode influenciar as suas expectativas sobre o amor, compromisso e até mesmo como escolhem e interagem com os parceiros.

Concluindo, o relacionamento dos pais serve como um modelo relacional primário para as crianças, influenciando o seu desenvolvimento em múltiplos níveis. Enquanto a presença de conflitos ocasionais é normal e pode até ensinar às crianças conceitos como resolução de conflitos e compromisso, a estabilidade e saúde geral do relacionamento parental é vital para o bem-estar dos filhos a longo prazo. É por isso, vital que os casais tenham em consideração estes aspetos na hora de partir, ou não partir, para a parentalidade. Ter filhos não é condição única e obrigatória para restabelecer o equilíbrio e a saúde do compromisso relacional entre o casal.

Carina Rodrigues

Psicóloga
// 2.º artigo da série de artigos sobre Mitos nas Relações Amorosas.
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Imagem Por, Louis-Léopold Boilly, “Conjugal Tenderness [La Tendresse conjugale]

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