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A ideia de que indivíduos com personalidades ou estilos de vida distintos podem complementar-se é amplamente difundida em várias culturas. Esta perspetiva, que encontramos em muitas narrativas e expressões culturais, sugere que a diferença pode, de alguma forma, fortalecer a ligação entre dois parceiros. No entanto, a questão permanece: o que sustenta essa crença? E até que ponto as diferenças individuais influenciam a atração e a dinâmica de um relacionamento?

A origem do mito

O mito de que os opostos se atraem é tão antigo quanto as próprias histórias de amor. Ao longo da história, muitas culturas transmitiram contos, lendas e fábulas sobre casais provenientes de mundos diferentes, unindo-se contra todas as probabilidades. Estas histórias, muitas vezes, refletem os desafios e as recompensas da superação de diferenças significativas para alcançar a compreensão mútua e a união.

No entanto, é essencial observar que as origens destas narrativas nem sempre estão ancoradas em realidades relacionais. Na verdade, muitas destas histórias serviram como metáforas para questões mais amplas, como a reconciliação de valores culturais conflituosos ou a união de grupos anteriormente em desacordo.

Literatura Antiga e Narrativas Culturais

A literatura, desde os tempos antigos, está repleta de histórias de amantes provenientes de diferentes estratos sociais, culturais ou facções rivais. Romeo e Julieta de Shakespeare, por exemplo, são frequentemente citados como o exemplo quintessencial de amantes “opostos” cuja atração os conduziu a um trágico destino. Estas narrativas não só captam a imaginação do público, mas também espelham as tensões sociopolíticas e culturais da época.

Crenças Socioculturais

Ao longo dos séculos, algumas sociedades promoveram a ideia de que casar com alguém com características opostas poderia ser benéfico. Por exemplo, uma pessoa calma e contida poderia ser aconselhada a casar-se com alguém mais extrovertido e enérgico, com a crença de que um equilibraria o outro. Estas crenças, muitas vezes, eram baseadas em ideias sobre os papéis de género, as expectativas sociais e a necessidade percebida de equilíbrio dentro do casamento.

Evolução e Biologia

Alguns teóricos sugerem que a atração entre pessoas com características opostas pode ter raízes evolutivas. Por exemplo, a diversidade genética é vital para a sobrevivência de uma espécie. Portanto, sentir-se atraído por alguém geneticamente diferente poderia, em teoria, ser benéfico do ponto de vista reprodutivo.

No entanto, enquanto estas teorias e narrativas podem oferecer perspetivas sobre a origem do mito, é crucial reconhecer que o mundo moderno dos relacionamentos é muito mais complexo. As expectativas e dinâmicas atuais são moldadas por uma miríade de fatores, desde o desenvolvimento pessoal e a maturidade emocional até influências culturais e sociais contemporâneas. Por isso, ao examinar o mito “os opostos atraem-se“, é vital fazê-lo com uma perspetiva multifatorial, considerando tanto as raízes históricas como a realidade moderna dos relacionamentos.

Neuropsicologia da atração

A atração, enquanto fenómeno complexo, é profundamente influenciada pelo nosso cérebro e pela forma como processamos informações sobre os outros. A neuropsicologia oferece conhecimento valioso sobre os mecanismos cerebrais subjacentes à atração e à formação de vínculos.

Mecanismos Neuroquímicos

O cérebro humano utiliza várias substâncias químicas para regular as emoções e os comportamentos relacionados à atração e ao amor. A oxitocina, frequentemente denominada “hormona do amor”, desempenha um papel crucial na formação de laços afetivos, na confiança e na redução do medo e da ansiedade nas interações sociais. Da mesma forma, a dopamina, associada ao sistema de recompensa do cérebro, é liberta durante as fases iniciais da paixão, conduzindo a sentimentos de euforia e prazer.

Reconhecimento de Semelhanças e Diferenças

O cérebro é extremamente adaptável na identificação de semelhanças e diferenças entre indivíduos. Estudos neuropsicológicos mostram que somos naturalmente inclinados a sentirmo-nos atraídos por rostos familiares ou semelhantes ao nosso. No entanto, ao mesmo tempo, diferenças notáveis, como traços únicos ou características distintas, também podem ser percebidas como intrigantes ou atraentes. Isto sugere uma dualidade na forma como o cérebro percebe a semelhança e a diferença.

Estímulos Visuais e Atração

A perceção visual é um componente crucial da atração. O cérebro tem áreas específicas, como o córtex fusiforme, responsável pelo reconhecimento facial. Essas áreas são ativadas quando vemos alguém que consideramos atraente. A diferença no estilo, na aparência ou em características culturais pode, por vezes, ser vista como exótica ou intrigante, levando a um aumento da atenção e do interesse.

Resposta Cerebral ao Novo e ao Diferente

O cérebro humano é curioso por natureza. O novo e o diferente muitas vezes ativam o sistema de recompensa do cérebro, levando a um aumento da atenção e do interesse. Esta é uma das razões pelas quais as diferenças iniciais num relacionamento podem ser vistas como excitantes e revigorantes. No entanto, é importante notar que a constante procura por novidade pode não ser sustentável a longo prazo num relacionamento.

A Interseção entre Emoção e Lógica

As áreas do cérebro responsáveis pela emoção e pela tomada de decisão interagem no processo de atração. Enquanto as regiões límbicas, como a amígdala, processam emoções e reações instintivas, o córtex pré-frontal está envolvido na avaliação e decisão sobre a adequação de um parceiro. Esta interação entre emoção e lógica pode explicar porque, às vezes, nos sentimos atraídos por alguém que, racionalmente, pode não parecer o parceiro ideal.

Teoria Sistémica e as Dinâmicas Relacionais dos Casais

A teoria sistémica, fundada no conceito de que o indivíduo não pode ser compreendido isoladamente, mas sim dentro dos sistemas e contextos em que está inserido, tem muito a oferecer na análise da ideia de que “os opostos se atraem”, através da compreensão de alguns conceitos em particular.

Homeostase Relacional

Em qualquer sistema, existe uma tendência natural para o equilíbrio ou homeostase. No contexto das relações de casal, isso pode traduzir-se numa complementaridade de papéis. Por exemplo, numa relação onde uma pessoa é extremamente extrovertida, pode ser conveniente que o outro parceiro seja mais introvertido, permitindo um equilíbrio nas interações sociais do casal.

Repetição de Padrões e Heranças Relacionais

Os seres humanos frequentemente repetem padrões de comportamento. Por vezes, uma pessoa pode sentir-se atraída por alguém que é seu oposto porque essa dinâmica reflete padrões ou relações anteriores, especialmente aquelas formadas na infância e que podem ser “herdados” por gerações.

Procura de uma Sensação de “Wholeness” (completude ou totalidade):

Esther Perel introduz esta ideia de que, muitas vezes, procuramos nos nossos parceiros qualidades que sentimos que nos faltam em nós mesmos. Esta procura por “completude” ou totalidade pode explicar porque, em muitos casos, pessoas com características antagónicas se sintam atraídas uma pela outra, numa dinâmica em que cada parceiro procura equilibrar ou complementar as próprias fragilidades ou inseguranças.

Resiliência e Adaptação

Os sistemas, onde incluímos pessoas em relacionamentos, procuram a adaptação e a resiliência face a desafios. Ter parceiros com diferenças marcantes pode, em alguns contextos, ser uma estratégia adaptativa, permitindo ao casal enfrentar uma variedade mais ampla de desafios.

A teoria sistémica oferece uma lente através da qual podemos examinar e compreender a dinâmica por trás da ideia de que os opostos se atraem. A verdade é que, embora possamos sentir-nos atraídos inicialmente pelas diferenças, é a forma como essas diferenças são geridas e integradas na relação que determinará a saúde e a longevidade da própria relação.

Atração versus Compatibilidade

Quando falamos sobre relações humanas, especialmente as românticas, é fundamental distinguir entre atração e compatibilidade. Ambas desempenham papéis cruciais em diferentes estágios de uma relação, e a distinção entre elas ajuda-nos a entender melhor porque “os opostos” podem inicialmente parecer-nos mais atraentes, mas nem sempre resultam em relações duradouras e saudáveis.

Em muitas relações, a atração é o ponto de partida. A novidade e o mistério associados a alguém diferente de nós podem ser intensamente fascinantes. Estas diferenças podem estimular a curiosidade, o desejo de conhecer e explorar o desconhecido. E, como já vimos, essa excitação e curiosidade podem ser associadas à segregação de neurotransmissores como a dopamina, que nos fazem sentir eufóricos e motivados a prosseguir com o relacionamento.

Contudo, com o passar do tempo, a profundidade da conexão torna-se mais importante do que a inicial faísca da atração. É aqui que a compatibilidade entra em cena. Os valores partilhados, objetivos de vida comuns, estilos de comunicação compatíveis, e uma visão semelhante do mundo e da relação, são fundamentais para a sustentabilidade de um relacionamento. A compatibilidade, em muitos aspetos, refere-se ao quão bem dois indivíduos podem coexistir e construir juntos, apesar (ou por causa) das suas diferenças.

O que quero dizer é que nem todas as diferenças são prejudiciais para um relacionamento. Algumas diferenças podem ser complementares e enriquecer a relação. Por exemplo, um parceiro que é mais racional e analítico pode equilibrar outro que é mais emotivo e intuitivo. Contudo, é essencial que ambas as partes valorizem e respeitem essas diferenças, em vez de as verem como obstáculos.

As diferenças podem também levar a desafios e conflitos, especialmente se estiverem relacionadas com valores fundamentais ou objetivos de vida. Neste contexto, a atração inicial pode ser ofuscada pela realidade quotidiana de tentar construir uma vida com alguém cujas perspetivas são opostas às nossas.

É essencial reconhecer que atração e compatibilidade não são mutuamente exclusivas. Podemos sentir-nos atraído por alguém com quem também se é compatível. No entanto, a chave é fazer escolhas conscientes, reconhecendo a diferença entre a excitação inicial e os componentes de uma relação saudável e duradoura.

Em conclusão, a ideia de que os opostos se atraem pode ser uma verdade em termos de atração inicial, mas a longevidade e saúde de um relacionamento geralmente dependem de uma compatibilidade mais profunda. Reconhecer e entender essa distinção é fundamental para formar relações que são tanto emocionantes quanto sustentáveis.

Carina Rodrigues

Psicóloga
// Terceiro e ultimo artigo da série de artigos sobre Mitos nas Relações Amorosas. // Ler 1.º e 2.º Artigo.

Imagem Por, René Magritte, “The Lovers [Les Amants]” (National Gallery of Australia)

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